terça-feira, janeiro 23, 2007

Dentro de um ônibus


Os raios de sol ainda não tinham rompido o domínio da noite, mas eu há algum tempo já tinha levantado da minha cama a caminho do trabalho, num burocrático departamento do governo do Estado do outro lado da cidade, como auxiliar de escritório.

Como sempre faço, ao reconhecer o meu coletivo, levantei o braço direito, sinalizando que eu iria pegá-lo. – como se fosse preciso, pois sempre pego o mesmo ônibus, e é sempre o mesmo motorista. Creio que ele pararia para mim mesmo que eu não fizesse sinal algum. Vivemos numa sociedade cheia de formalidades e o sinal para parar o ônibus é uma delas.

O ponto de ônibus da minha casa é próximo do ponto de partida da linha desse ônibus, o que me dá a possibilidade de escolher o lugar para me sentar, já que ainda não há muitos passageiros dentro dele. Porém à medida que o ônibus faz o seu percurso, o espaço vazio do veículo, vai se tornando cada vez mais escasso. Vinte minutos depois de me assentar, já não há mais lugar sentado. E quinze minutos depois disto, já não há nem mais lugar em pé. Entretanto, o motorista não parece se compadecer com essas pessoas que estão espremidas ali, ele sempre tenta colocar mais alguém. Talvez no fim de sua jornada de trabalho esse motorista aposte com seus colegas quem conseguiu pôr mais passageiros em seus carros.

O sol começa a despontar no céu e os passageiros do ônibus tentam se acomodar, como se estivessem querendo desobedecer a Lei Natural da Física, de que dois corpos não ocupam o mesmo lugar no mesmo espaço. Todas as medidas possíveis para dar espaço dentro do ônibus já foram tomadas como: dar o acento as pessoas mais gordas, segurar as mochilas e as bolsas para que não atrapalhem a penosa travessia dos passageiros no que sobrou do corredor do ônibus.

Essas medidas podem amenizar um pouco a situação daqueles que estão apertados naquele momento, mas como já foi mencionado, o motorista faz daquele meio de transporte um coração de mãe, sempre cabendo mais um... Mas tenho quase certeza de que o coração dele ou de seu patrão não é de mãe e sim de pedra.

Os passageiros desse ônibus começam o seu dia de trabalho, enfurnados dentro de uma lata de ferro que nem ar-condicionado tem. Lutam para entrar e lutam para sair do ônibus. As mulheres mais jovens e com um pouco mais de carne em seus corpos, ainda tem outro objetivo, que nem quase nunca é alcançado: o de sair do ônibus sem que nenhuma mão boba ou qualquer outra parte boba bolinem seus corpos. Uma tarefa árdua devido à grande proximidade entre as pessoas, facilitando muito a atuação dos tarados matinais.

Quase duas horas depois de eu fazer sinal para este aglutinador forçado de gente que chamam de ônibus, o meu ponto do meu trabalho se aproxima. Muita gente ainda continua dentro do ônibus. Para facilitar minha decida, vou me levantando um ponto antes do meu. Assim posso pedir licença a todos que estão em meu caminho, e são tantos os que estão nele... que licença deve ser a palavra mais pronunciada por mim.

Alguns para não repeti-la como eu faço, preferem utilizar um som sinônimo parecido com o tsts, mas eu acho isso muito impessoal. Acho que essas pessoas merecem um pouco mais de pessoalidade e dignidade em sua vida.

E é nisso que venho pensando há algum tempo, em melhorar de alguma forma a viagem que elas fazem para ir ao trabalho. Sei que muitos dos passageiros desses ônibus ainda tomam outros meios de transportes com outros ônibus e trens e que com certeza são tão cheios ou mais quanto este.

Enquanto subia no elevador para chegar até o andar onde eu trabalhava, analisei todas as características que pertenciam aquele ônibus, e nas minhas formas de atuação para melhorar aquela viagem.

Pensei em algo que pudesse alegrar um pouco aquelas pessoas. Se eu tivesse uma boa voz, eu poderia cantar para elas, mas logo me dei conta que só sirvo para cantar no banheiro e baixinho, para que os vizinhos não me escutem e reclamem das minhas cantorias.

Descartando a possibilidade de cantar, lembrei que quando jovem gostava muito de fazer poesias e ao menos os meus amigos gostavam delas. Algumas meninas até choravam tamanha a emoção que eu causava. Decidi, por fim, que retomaria a minha veia poética para dar um pouco de luz e erudição aquela gente que estava cheia de contatos físicos, mas com pouca leveza espiritual devido às irritações diárias.

Chegando à minha mesa comecei a rascunhar os primeiros versos da poesia que entreteria aqueles passageiros tão vazios de esperança! Mas que também serviriam para posicioná-los com uma nova postura diante das injustiças a qual eles são tratados todos os dias. Por isso mais que uma forma de diversão a minha poesia deveria dar consciência a esses indivíduos. Foi com esse espírito que me veio à lembrança o velho Marx, e inspirado em suas palavras comecei a rascunhar numa folha que seria toda branca, não fosse o timbre do governo:

Proletários deste coletivo!

Proletários não, muitos desses trabalhadores tem pouca instrução e não saberiam o que isso significa. Sendo assim recomecei:

Trabalhadores deste coletivo!
Prestem bem a atenção!

O que poderia rimar com coletivo? Era preciso que a poesia rimasse, porque a rimas chamam a atenção do público.

Trabalhadores deste coletivo!
Prestem bastante atenção!
Sei que posso ser agressivo,
Pois isso é minha munição!

Roubam-lhes a vida,
E eu venho lhes roubar de novo,
Já estou um tanto desgostoso,
E por isso quero essa briga!

Todos levantem as mãos!
Pois aqui estamos juntos,
Mas não estamos unidos,
É preciso um empurrão!
Para não sermos aflitos!

Unidos podemos tudo!
Unidos formamos um povo,
Não se pode ficar mudo,
Façamos tudo de novo!

Minha inspiração chegou ao fim. Amanhã completarei o meu plano dando inicio as minhas declamações diárias. Com isso, presumo que, diminuirei os transtornos causados pelo enlatamento dos passageiros e de sobra ainda farei com que eles tenham consciência do sistema que os aperta tanto.

Depois de passar o meu dia de trabalho carimbando e lendo papéis, me encaminho para um restaurante para jantar, tomar duas tulipas de chope e no final um cafezinho para limpar. Faço isso não porque não goste de cozinhar, mas para fugir do horário de pico de volta para casa. Pois agüentar aquele sofrimento duas vezes seria demais para mim. Minha sorte é receber vale refeição!

Volto para casa em um ônibus relativamente vazio, onde posso relaxar e tirar uma pequena soneca. Mas não hoje! Hoje farei o trajeto lendo os meus versos até tê-los em minha mente de cor e salteado. Decorar os meus versos é um gesto assaz importante, pois retirar um papel do meu bolso naquele aperto seria muito complicado para mim. Além de incomodar outras pessoas que estarão do meu lado e elas próximas as outras, podendo desencadear uma corrente de incomodo por todo local.

Entro em minha casa e logo tomo meu banho, já me preparando para dormir. Deito na cama ainda com os meus versos e mãos. Dou uma última lida e em seguida fecho meus olhos e declamo meu poema em voz alta sem errar as ordens dos versos. Estou pronto! Ponho o papel na mesa de cabeceira, programo o despertador e apago a luz, para finalmente dormir.

Levanto-me ao som do despertador. Prontamente me arrumo para ir trabalhar. Hoje, distintamente dos outros dias tenho uma vontade enorme de pegar aquele ônibus. Mas minha ansiedade deve ser controlada, pois minha pressa pode fazer com que eu me arrume demasiadamente rápido e pegue o ônibus anterior ao que pego rotineiramente.

Vou até o ponto espero o coletivo passar e faço o mesmo sinal de sempre, mas hoje o faço muito mais empolgado do que nos outros dias. O motorista pára e eu entro. Ainda existem muitos lugares disponíveis, mas não me sentarei em nenhum, prefiro declamar de pé.

Como sempre o ônibus se abarrota de gente. A temperatura começa a esquentar e a dificuldade de se respirar aumenta a cada passageiro novo que adentra ao recinto. Esperarei mais cinco minutos até que fique insuportável aqui dentro para poder começar. Afinal quanto pior melhor, ou quanto mais público mais minha mensagem se espalhará.

Sinto que é o momento tão esperado por mim chegou. Relembro os versos antes de proclamá-los à minha platéia. Tomo um pouco de ar, o pouco de ar que é possível tomar e começo com meu ato:

- Trabalhadores deste coletivo!
Prestem bem a atenção!

Vejo que as pessoas do fundo do ônibus começam a se movimentar para escutar o que eu digo. Continuo...

- Sei que posso ser agressivo,
Pois isso é minha munição!

Roubam-lhes a vida,
E eu venho lhes roubar de novo,
Já estou um tanto desgostoso,
E por isso quero essa briga!

Todos levantem as mãos...

Em um gesto repentino algumas senhoras que estavam ao meu redor realmente levantaram as mãos. Percebo que os passageiros no final do ônibus começam a se exaltar. E ao mesmo tempo em que isso acontece o motorista pára bruscamente! Sai da direção e me agarra apertando os meus ombros. Outros homens o ajudam e me pegam pela perna. E eu sem muito poder de reação me vejo sendo lançado para o lado de fora do ônibus, caindo com minhas costas no chão, sem que eu pudesse terminar de declamar os meus versos.

Antes do motorista arrancar com seu ônibus, ainda gritou comigo dizendo que só não me levaria para a delegacia porque seu serviço estava atrasado. Os outros homens que o ajudaram voltaram depressa para o ônibus, para retornar aos seus lugares.

Só fui compreender a ação do motorista e dos passageiros no dia seguinte, quando um jornal sensacionalista publicou em primeira pagina: PASSAGEIROS IMPEDEM ATENTADO TERRORISTA EM ÔNIBUS.

Foi só assim que eu percebi que além de analisar os fatos, planejar a ação e praticá-la, também é preciso saber qual a disponibilidade de mudança que o povo está disposto.

Depois disso passei a levantar da cama mais cedo, para pegar o primeiro ônibus da linha. E assim tive que me acostumar novamente a fazer sinal a um novo motorista...